Vacinação e Saúde pública — Opinião de Maria do Céu Patrão Neves

A problemática da vacinação está na ordem do dia e pelas piores razões, pela morte de uma jovem e infecção de mais de duas dezenas de portugueses por uma doença dada como erradicada no nosso país: o sarampo.

Os temas relativos à saúde surgem no espaço público invariavelmente por acontecimentos negativos. No que se refere à vacinação, a crónica notícia anual, lá para os princípios do Outono, é a falta de vacinas contra a gripe. Curiosamente (ou não) neste caso, a razão principal é o abuso de consumo, isto é, o recurso à vacina da gripe por pessoas que não têm qualquer indicação para a receberem. Hoje a questão que está em debate público é precisamente a inversa: a da recusa dos pais vacinarem os seus filhos quando é clinicamente recomendável.

Esta questão tem-nos sido apresentada, nos últimos dias, mais frequentemente pela Direcção Geral da Saúde no sentido de tranquilizar a população relativamente ao número de infectados, às condições de contágio e cuidados a ter e – claro – de disponibilidade de vacinas contra o sarampo o que, aliás, faz parte do plano nacional de vacinação sem, todavia, ser obrigatória. Mas o debate tem sido também animado por testemunhos de mães que apresentam as suas razões para não vacinarem os seus filhos as quais, de uma forma simplista, se resumem a serem “contra químicos no corpo”, apoiando-se em informação recolhida na internet (não há opção humana que não encontre argumentação na internet!) e conversas com naturalistas e protagonistas diversos de medicinas alternativas (excluindo os profissionais de saúde que possam pôr em causa a sua convicção).

Devo reconhecer que tenho simpatia pelo movimento “anti ingestão de químicos”. A sociedade medicalizada em que vivemos converteu em doença sensações diversas ou mesmo traços de carácter, numa crescente intolerância ao mínimo desconforto ou até à diversidade de personalidade. Se tem uma pressão na cabeça, toma um comprimido; se comeu demais, toma uma pastilha; se sente ansiedade, toma um calmante… Os pais dão comprimidos aos filhos para terem atenção na escola, para não serem tão activos, para comerem mais, para dormirem melhor… A automedicação é uma praga difícil de travar. Até a medicação profissional é difícil de travar porque se vai ao médico e este nada lhe receita, critica-o como incompetente e sem a devida compreensão pela sua situação, e passa a outro e até a outro ainda até um lhe passar a receita que quer ou a baixa a que aspira.

A hipocondria é a doença mais comum. Por isso temos todos os telejornais da manhã com um apontamento clínico (não sei se antes ou depois das cartomantes…?) introduzindo a doença do dia pela incontestável estatística de que 3 a 4 ou 6 a 7 portugueses em cada 10 sofrem da privilegiada maleita. Não há quem resista saudável!

O excesso de medicação – por vontade própria como por indicação clínica – e seus profundos efeitos negativos – na saúde individual como pública – só nos últimos tempos veio a ser denunciado pelo problema já hoje dramático da resistência crescente aos antibióticos que ameaça fazer-nos regressar a níveis de vulnerabilidade de há 100 anos atrás…

Mas “não podemos pôr tudo no mesmo saco” como se o actual excesso de ingestão de químicos nos devesse conduzir à sua total abstinência; não podemos ficar reféns de um movimento pendular “entre o 8 e o 80” como se só existissem duas alternativas possíveis quando, afinal, o bom-senso é invariavelmente inimigo dos excessos do radicalismo.

A vacinação das crianças, podendo suscitar reacções ou pontuais situações adversas, está cientificamente comprovada como beneficiando o indivíduo em causa, contribuindo também para a saúde pública. Foi por via da vacinação generalizada que se erradicaram patologias que agora ameaçam regressar, no contexto favorável das migrações e da crescente heterogenia social, pelas alterações climáticas que nos expõem a novas doenças, e pelo excesso de autonomia concedida aos pais na promoção do melhor interesse da criança. Hoje está em risco não só a saúde das crianças, mas a saúde pública também. E se considero que a educação e acção pedagógica é a melhor via para a mudança de atitudes, há situações urgentes que exigem acções imediatas. Esta é certamente uma delas.

 

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