Um debate postiço — Opinião de Maria do Céu Patrão Neves

Para intervir num dos debates da actualidade, introduzindo algo de diferente no espaço público, centrar-me-ei hoje sobre as Directivas Antecipadas de Vontade/DAV, isto é, a prerrogativa disponível a todos os cidadãos, maiores de idade e conscientes dos seus actos, de decidirem livremente sobre o tipo de cuidados de saúde que desejam e/ou recusam receber numa eventual futura situação de doença, e em que já não sejam capazes de exprimir a sua vontade. Enquanto estiverem em condições de decidir por si mesmos sobre si próprios podem sempre fazê-lo, perante qualquer profissional de saúde.

As DAV foram estabelecidas em Portugal pela Lei n.º 25/2012, a qual prevê que as decisões livres dos cidadãos em relação ao seu fim de vida possam assumir a forma de Testamento Vital, de nomeação de um Procurador de Saúde, ou ainda de ambas simultaneamente – o que é já revelador da ampla diversidade de meios acessíveis ao cidadão para manifestar a sua vontade no seu processo de morte. Através do Testamento vital o cidadão pode escrever a sua vontade em documento reconhecido pelo notário e mantê-lo consigo; pode também, de forma mais simples e eficaz, preencher o formulário das DAV, reconhecendo a assinatura no notário ou realizando-a perante um funcionário do Registo Nacional de Testemunho Vital/RENTEV a quem entrega o documento que se torna assim acessível ao seu médico assistente numa situação de dúvida acerca dos procedimentos desejados. O cidadão pode também nomear um familiar, um amigo ou outro como seu Procurador de Saúde, delegando assim em quem confia as suas decisões sobre os cuidados desejados ou rejeitados.

As duas modalidades apresentam vantagens e desvantagens, o que poderá justificar a opção pela modalidade mista. O Testamento Vital corresponde à decisão assumida do próprio para uma determinada circunstância, tomada num determinado momento. Ora, posteriormente, a situação de doença pode não ser bem a descrita e novos meios terapêuticos podem ter surgido. Neste caso, o Procurador de Saúde toma uma decisão mais informada. Porém, nunca ninguém se pode colocar na posição do outro, pelo que a decisão do Procurador pode não corresponder à que o próprio tomaria então.

Além desta diversidade de meios contemplados pela lei portuguesa e mesmo da sua flexibilidade de aplicação respondendo extensamente às conveniências de cada cidadão, as DAV também são bastante abrangentes no que se refere aos direitos reconhecidos ao cidadão. Com efeito, no conspecto internacional, as DAVs portuguesas são das mais liberais permitindo um exercício muito amplo da autonomia do doente na possibilidade de recusa, por exemplo, de “meios invasivos de suporte artificial de funções vitais”, “reanimação cardiorrespiratória”, “alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte”. O cidadão não pode pedir que o médico o “mate”, mas pode recusar toda a acção que lhe prolonga a vida e pode exigir que o médico o alivie da dor.

O governo esperava que cerca de 20 mil portugueses subscrevessem as DAV nos primeiros 6 meses da sua regulamentação, em 2014, considerando que muitos quereriam escolher o seu próprio processo de morte. Afinal, ainda hoje, não há sequer 7 mil inscritos. Falta de informação suficiente? Talvez. Falta de interesse? Certamente. Esta é apenas uma das razões por que o debate sobre a eutanásia, hoje, entre nós, é postiço.

 

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