Após a folia do Carnaval, começou a Quaresma.
O carnaval, ancestralmente festejado nos países católicos, sempre foi marcado pelo jogo de identidades, pela transgressão das regras e pelos excessos alimentares em particular a ingestão de bebidas alcoólicas. São dias em que tudo parece ser permitido, numa compensação antecipada de dias em que tudo parece ser proibido. Anunciava-se assim um tempo austero, de cumprimento intenso e estrito de ritos, de jejum e de abstinência.
E, todavia, esta forma simplista de percepção da quaresma é bastante equívoca. Nem os rituais litúrgicos, nem tão pouco o jejum e a abstinência constituem qualquer finalidade ou têm qualquer valor em si mesmo. São apenas vias para o verdadeiro objectivo de celebração intensa da fé, através do encontro consigo mesmo e da (re)orientação da sua vida. Isto é – se quisermos ainda retomar uma das relações remotas do carnaval –, a quaresma convida à escolha séria de uma identidade autêntica: quem queremos ser?
A quaresma, para o cristão, é um tempo, por excelência, de preparação de celebração da fé, do fundamento ou razão de ser da sua fé: a morte e ressurreição de Jesus. É porque Jesus morre e ressuscita que ele se revela em plenitude como homem e como Deus. Sem o supremo sacrifício de si por amor à humanidade e a superação da morte, Jesus seria apenas um homem bom ou um profeta, que suscita admiração, mas não veneração.
A quaresma, para o cristão, é um tempo de grande decisão acerca da sua vida: aderir a Deus ou deambular pelo mundo… Por isso, este tempo extraordinário, inicia-se pela evocação das tentações de Jesus, à semelhança das tentações que quotidianamente a materialidade do mundo e a sensibilidade do corpo colocam à integridade do espírito e perante as quais optamos por um caminho.
A quaresma, para o cristão, é um tempo de travessia do deserto, de provações e resiliência; um tempo de solidão e recolhimento; um tempo de interioridade e encontro; um tempo de conversão e renovação, acompanhado pela fé e na certeza do encontro com Cristo. Por isso também não é um tempo de tristeza, mas de encontro consigo mediado por Deus.
A travessia do deserto não é, todavia, privilégio dos cristãos. Pode e deve ser percorrida por todos e também por aqueles que caminham sem o apoio da fé ou a companhia de Cristo. Será então um tempo de abrandamento do afã diário, de disponibilidade para pensar, de tranquilidade para decidir, de convicção na capacidade de ser mais e melhor, num processo que, genuinamente vivido, conduzirá todos e cada um encontrar o sentido da sua vida em que também a sua identidade se afirma e fortalece. Será um tempo de encontro consigo mesmo que a todos renova… e até pode ser que encontre Deus no seu caminho….