Pessoas: entre as não-humanas e as electrónicas — Opinião de Maria do Céu Patrão Neves

Começo com uma declaração de interesses: sou pessoa! Só “pessoa”, sem outras adjectivações. E esta minha crónica é uma crítica à deterioração da noção de “pessoa” e uma valorização da sua singularidade como definição da identidade de cada um de nós.

Perguntar-se-á o leitor que aqui chegou, a que propósito surge este meu tema de hoje, com a veemência com que o apresento…?! É que, recentemente, a Comissão dos Assuntos Jurídicos do Parlamento Europeu aprovou uma Resolução que atribui o estatuto jurídico de “pessoa electrónica” a robots, com a argumentação de que o seu nível de autonomia não permite mais que sejam considerados “simples instrumentos nas mãos de outros agentes”.

Perplexa, concluo que o nível de confusão mental que esta afirmação revela é preocupante. Afinal, dela resulta que o estatuto de “pessoa” decorre de um qualquer grau de autonomia por determinar… Mas então: e as crianças, naturalmente sem autonomia, não são pessoas? E senis ou deficientes mentais profundos, também não são pessoas? Além disso, aquela afirmação supõe também a existência, se não presente pelo menos futura, de robots que deixem de ser instrumentos dos humanos, porque os humanos os tornaram autónomos dos humanos!?!

E, perante esta realidade, em vez de se questionar a linha de progresso técnico-científico de produção de máquinas independentes das actuais pessoas, que nos atira para um tão fantástico quanto dramático mundo da ficção científica, a grande iniciativa dos representantes dos cidadãos é conferir o estatuto jurídico de “pessoa” a máquinas!? Afinal – pode-se acrescentar – os robots têm vindo a substituir as pessoas em múltiplas funções, fazendo mesmo já hoje parte dos funcionários em lares de idosos (o idoso não começará por se assustar…? E como se sentirá por não haver mais pessoas para o cuidar e ficar entregue a um robot…? Substitui-se o calor humano pela eficiência da máquina…), exercendo a função de cuidadores, recebendo nomes de pessoas, tornando-se – ao que parece – pessoas iguais a nós.

Esta orientação igualitarista – que reduz diversos a iguais, tudo homogeneizando e amorfizando – vem há muito grassando na sociedade contemporânea e conhece agora um novo nível de radicalização com o estatuto de “pessoa electrónica”.

Já antes o igualitarismo se havia começado a abater sobre as pessoas na crescente equivalência indistinta entre pessoas e animais.

Ganham realce díades como “animais não-humanos” e “animais humanos” – valorizando uma mesma identidade essencial, a biológica, a animal –, ou “pessoas não-humanas” e “pessoas humanas” – na atribuição de um mesmo estatuto a ambos (na Índia, os golfinhos são legalmente considerados “pessoas não-humanas”). Afinal, também os animais têm nomes humanos (já não há “bobbies”, mas “marias”, “anas”, “tós”…, desculpem se não utilizo maiúsculas!); são adoptados e substituem filhos, irmãos, companheiros; frequentam hotéis e salões de beleza; os “donos” (perdoem o arcaísmo) recebem aulas para os seus animais, contratam “baby-sitters”, passeiam-nos em tradicionais carrinhos de bebé… Não é preciso forjar uma igualdade entre pessoas e animais para estabelecer obrigações das primeiras em relação aos segundos; pelo contrário, é precisamente porque são diferentes que as pessoas têm deveres em relação aos animais, os quais não podemos exigir aos animais em relação às pessoas.

Este igualitarismo exacerbado, redutor de identidades – pessoa, máquina, animal – e falseador de relações – as obrigações que assistem às pessoas não são nem podem ser assumidas por outrem – corresponde a uma degenerescência do princípio de não discriminação entre pessoas que, distorcido e radicalizado, resulta hoje, cada vez mais, na redução de tudo ao mesmo.

Sou “pessoa” – repito. E ser pessoa é reconhecer a nossa constituinte dimensão biológica, que em diferente grau partilhamos com os animais, e assumir a nossa constituinte dimensão espiritual, que nos torna a todos diferentes. Cada um de nós, igual na sua dimensão biológica enquanto ser humano, realiza-se diferentemente ao longo da vida, como pessoa. Por isso não há duas pessoas iguais. E ser pessoa é também reconhecer a nossa capacidade de nos aperfeiçoarmos, como os robots têm vindo a evoluir, mas assumir que a nossa perfectibilização não se reduz ao modo de funcionamento, à eficácia, à produtividade, mas no nosso modo de ser e ser para os outros, mais altruístas e empáticos, mais solidários e compassivos…, e os demais valores que queremos moldem uma sociedade de pessoas, acolhedora de todas as formas de vida não-pessoas.

 

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