Os dias contados — Opinião de Maria do Céu Patrão Neves

A consciência de termos os dias contados perpassa vários Salmos e explicita-se no Livro de Job 14, 5 “Os dias do homem estão determinados!” E o texto prossegue: “Tu [Deus] decretaste o número dos seus meses e estabeleceste limites que ele não pode ultrapassar”. Esta nossa realidade permanece-nos quotidianamente estranha e emerge, mais intensa e frequentemente, quando perdemos alguém. O falecimento daqueles com quem nos relacionamos confronta-nos com a nossa finitude, com a transitoriedade da nossa vida, com a efemeridade dos nossos dias…

Na verdade a morte do outro é a única experiência que temos da morte, uma experiência indirecta e sempre inexoravelmente alheia. Quando experimentarmos a morte, na primeira pessoa, directamente, já não seremos… Eis por que, apesar de a morte ser a única certeza absoluta da nossa vida, de que ninguém duvida, só a conhecemos no outro. A morte que conhecemos é sempre a morte do outro.

E outros, alguns dos quais ou todos apenas conhecíamos à distância, partiram recentemente: Mário Soares, Guilherme Pinto e Daniel Serrão, e antes ainda João Lobo Antunes e António Barbosa de Melo, apenas para destacar alguns dos mais notáveis de entre nós que perdemos.

Estes e outros que, mesmo sem conhecermos pessoalmente, nos deixaram um vazio ao partir, tinham-se tornado parte das nossas vidas pelo modo como geriram as suas: na dádiva de si ao bem comum, numa acção transformadora da sociedade que partilhamos. Fomos nós que, por diversas razões e por percursos diversos também, mas sempre graças ao seu exemplo, os integrámos nas nossas vidas como referências. O vazio que agora nos deixaram é o do esgotar dos seus dias e a consciência do escoar dos nossos.

Não o repito com o fatalismo que acompanha a certeza da morte, nem tão pouco na melancolia da resignação ou na revolta do inconformismo, ou ainda na angústia da sua ineludível realidade. A consciência de ter os dias contados é também um alerta, uma chamada de atenção para a gestão criteriosa de cada um dos nossos dias. Quem pode desperdiçar o tempo que tem, sabendo que é limitado e sem saber quando se esgota?!

Aqueles e outros que, mesmo sem conhecermos pessoalmente, nos deixam um vazio ao partir, na intensidade que imprimem na consciência de termos os dias contados incentivam-nos também a preenchê-los mais numa atenção aos outros do que centrados em nós próprios, mais numa abertura às necessidades dos outros do que fechados nos nossos interesses, mais na construção de uma sociedade melhor do que na procura do nosso bem-estar… É, afinal, “perdendo” os nossos dias para os outros que os “ganhamos” para nós. Recuperamos assim, através do seu exemplo, o sentido original, bíblico, da expressão: a consciência dos dias contados é uma exortação para que não os deixemos passar por nós mas os vivamos com e para os outros.

 

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