Opinião de Maria do Céu Patrão Neves
Tenho vontade de escrever sobre a Catalunha, pela importância do caso para Portugal, para a Europa a que pertencemos também, e até porque tenho relações profissionais e de amizade com vários catalães, tendo estado ainda na semana passada em Barcelona. O título que atribui a esta crónica é já inequívoco sobre a minha perspectiva de leitura. O “piromaníaco” é aquele que ateia, atiça o fogo e depois, para não correr riscos, se afasta prudentemente, abandonando o local do crime e ficando mera e prazerosamente a assistir ao espectáculo que produziu, a contemplar o fogo. Os “piromaníacos” são todos perigosos, os metafóricos como os reais (que têm martirizado o nosso país).
É evidente que chamar “piromaníaco” a Carlos Puigdemont é demasiado simplista para a extraordinária complexidade que o caso Catalunha envolve, nos planos histórico-cultural, socioeconómico e jurídico-político. Não obstante, aponta para uma característica que se começa a tornar lamentavelmente comum em políticos medíocres: o de despudoradamente sacrificarem os reais interesses do povo por que respondem em prol da sua elevação político-mediática (sempre efémera…). Será talvez também sinal do progressivo egocentrismo (e já não apenas individualismo) que grassa nas nossas sociedades, de que a obsessão pelas “selfies” constitui um expressivo exemplo.
A este propósito lembramos a ideia do Primeiro-Ministro britânico David Cameron de um referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia como estratégia para conter os conservadores mais extremistas, na tão tranquila quanto ilusória convicção de que tudo permaneceria no jogo político que a ditara. Correu-lhe mal, tendo saído pela porta pequena; mas correu pior ao país que, objectivamente, ficará e está já mesmo em piores condições socioeconómicas, agora amarrado ao resultado de um referendo em que a população mais jovem e activa pouco ou nada se revê, tendo desencadeado um debate (que pode comprometer seriamente a democracia) acerca de um desigual factor de ponderação do voto de pessoas mais velhas e/ou menos instruídas… O voto em Donald Trump, um Presidente com um inequívoco deficit intelectual grave (além de mental também não menos grave), fortemente eleito pelo interior do país pouco letrado e preconceituoso (frequentemente as duas características “andam de mãos dadas”) veio acentuar o descontentamento dos mais esclarecidos sofrerem as consequências das opções poucos informadas e pouco ponderadas de outros…
Mas regressemos à Catalunha de Puigdemont para apresentar apenas duas notas isoladas que pouco têm estado no radar da comunicação social/opinião pública. A primeira é relativa ao argumento da Catalunha, como segunda região mais rica da Espanha, não querer sustentar as regiões mais pobres. A sua simples formulação constitui uma aberração intelectual e moral. Se todos os países ricos saíssem da União Europeia, se todas as regiões ricas se independentizassem dos seus países, se todas as cidades ricas se isolassem das suas regiões, se todas as empresas ricas se deslocalizassem, se todas as famílias ricas abandonassem o sistema de segurança social …, não só todos os demais ficariam mais pobres como também os ricos ficariam menos ricos e jamais poderiam reivindicar para si valores em que se erige o mundo ocidental como são o da justiça social ou da solidariedade, assim negada aos outros. Há uma insultuosa contradição intelectual e moral de uma Catalunha que recusa contribuir para Espanha e apela ao contributo da União Europeia.
A segunda nota é relativa à solução que muito catalães, como espanhóis em geral, advogam para resolução da crise catalã: a constituição de uma federação Ibérica. Nas conversas quotidianas como em textos revestidos de diferentes autoridades, considera-se Portugal como a primeira região Ibérica a tornar-se independente, tornando-se a Catalunha a segunda e a que outras se seguirão, devendo depois constituir-se numa confederação. Pretendem assim legitimar a conquista da sua independência roubando ou meramente descartando a de Portugal. A desonestidade intelectual e a ofensa moral são demasiado flagrantes para merecerem comentário.
Puigdemont está por Bruxelas, as empresas abandonam a Catalunha, o turismo regride, os catalães interrogam-se sobre o que aconteceu como sobre o futuro e entre nós…, ficam estas notas para alimentar o debate.