Ética, Ciência e Sociedade

por Maria do Céu Patrão Neves

Quase todos os dias somos inundados com notícias sobre o “admirável mundo da ciência e das novas tecnologias”. Surpreendemo-nos, espantamo-nos, maravilhamo-nos… Somos crianças coladas na montra de uma loja de brinquedos.

A comunicação social encarrega-se do marketing. Mais do garantir a bondade de tudo o que a ciência nos oferece ou pode vir a oferecer, espicaça o desejo e forja a ilusão do direito a termos acesso a tudo o que a ciência produz ou pode vir a produzir. Este desejo, esta ilusão são apenas reflexo da consciência de uma privação, consciência de não possuir algo que já existe, mesmo que tal não contribua necessariamente para a realização pessoal ou para o desenvolvimento social. Há uma obsessão por ter, por ter sempre mais, numa confusão dramática entre o “ser” e o “ter”: o “ter” deveria ser instrumental, isto é, contribuir para o “ser”, para a perfectibilização do “ser”; porém, hoje, e cada vez mais, é o “ser” que é avaliado pelo nível do “ter” (quem mais “tem” mais “é”…), num esquecimento da identidade de cada um, enterrada e disfarçada por camadas do “ter”.

Deixem-me explicar… No domínio da tecnociência, cada vez que sai um produto novo apercebemo-nos obviamente de que o não temos e que, por esta fútil razão, o queremos ter. É assim que, por exemplo, descartamos todas as versões dos nossos gadgets, substituídas pelo surgimento de outras mais recentes, mesmo que as anteriores estivessem em perfeitas condições. Desembaraçamo-nos do telemóvel ou do computador, mas também do relógio e até do carro. Não há qualquer necessidade; apenas claudicação irreflectida à manipulação pelos interesses económico-financeiros.

É assim também, num outro exemplo do mesmo, mas num registo totalmente diferente, que os pais querem que os seus filhos tenham tudo o que os outros têm, não percebendo que é numa equilibrada gestão entre o que se dá e não se dá que nascem traços de carácter como o esforço, a perseverança, o engenho, o mérito…

Em relação às novas biotecnologias que a ciência nos traz, permanecemos ao nível do encantamento infantil na expectativa da chegada do Natal, e os media continuam a incentivar a adesão acrítica ao “novo” apenas pelo sensacionalismo de que o podem revestir o que, por sua vez, lhes traz audiências. Ficamos reféns de uma espiral que não conduz a parte alguma, num rodopiar alucinante, sem sentido.

É assim, por exemplo, com a gestação de substituição, que não correspondia a uma ansiedade da sociedade, que os políticos decidiram sem promoverem o debate dos cidadãos, que é proibida em praticamente todos o mundo (por muitas e boas razões que aqui não cabem) e que agora a comunicação social se entretém a fazer passar como normal e mesmo desejável e até louvável…

“Ética, Ciência e Sociedade”, um simpósio internacional que terá Ponta Delgada por palco, no próximo dia 24 de Novembro, não diaboliza o progresso científico-tecnológico; antes quer contribuir para o reforço do poder cidadão na opção pelas linhas de investigação científico-tecnológica que melhor servem as necessidades de todos. “Ética, Ciência e Sociedade” é acerca de mais e melhor informação para o cidadão acerca dos trilhos presentes e futuros das ciências; acerca da urgência de reflexão e debate sobre as inovações que promovem ou ofendem a dignidade humana e a justiça social; é acerca do poder que a sociedade, o cidadão esclarecido, com capacidade analítica e crítica, tem para, entre os caminhos possíveis, escolher os melhores.

 

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