Escarcéus

Opinião de Inês Sá

Tudo seria mais fácil se me mantivesse num frasquinho de álcool… é de facto um sentimento tão insólito quanto verdadeiro. Fiz exatamente este desabafo há alguns dias atrás, simplesmente porque não gosto desta época de Natal, mas depois de uma semana tão intensa, com o revelar de um escândalo como o da “Raríssimas”, ao qual se vem juntar o escândalo da IURD – Igreja Universal do Reino de Deus, rapidamente percebi que o meu frasquinho de álcool, apesar de um capricho, seria bem mais útil para outros momentos.

Eventualmente,  numa primeira análise, estes dois escândalos parecem nada ter em comum: o primeiro, revela a usurpação do poder e gestão danosa por parte de uma mulher, presidente de uma instituição sem fins lucrativos – “Raríssimas” -, fundada em abril de 2002, com o objetivo de apoiar todos os cidadãos portadores de doenças menos comuns e todos aqueles que com eles se correlacionam; o segundo, tornado público através de uma grande reportagem da TVI, revela os contornos mais obscuros da amplitude da ação da Igreja Universal do Reino de Deus – IURD, responsável por uma rede de adoção ilegal, que durante anos atuou em Portugal, tendo para esse efeito criado em 1990 um Lar destinado a crianças,  que eram abruptamente subtraídas às mães biológicas, na cidade de Lisboa. É certo que são temas completamente distintos, considerando até os sentimentos, tão dispares, que em mim despoletaram.

Por um lado, o escândalo da “Raríssimas” deixou-me de alguma forma revoltada, mas aquilo que verdadeiramente me angustia e preocupa, muito mais do que toda a corrupção agora vinda a público, é o futuro daquelas crianças, daquelas famílias, que pura e simplesmente têm sido completamente ignoradas em todo este processo, ao mesmo tempo que nos chegam noticias da rescisão de diversos apoios, protocolos e acordos, por parte de diferentes entidades, preciosos para o bem estar daqueles que desta instituição dependem. No que concerne ao eventual comportamento ilícito da Presidente daquela instituição, embora me cause náuseas, muito em particular por se ter desenvolvido com a bengala da solidariedade, atrevo-me a admitir que, lamentavelmente, mas não raríssimas vezes, já tive conhecimento de condutas semelhantes ou ainda piores.

Por outro lado, a reportagem relativa à IURD, movimento religioso com milhares de seguidores, equiparável a uma empresa de sucesso, cujo seu Bispo acumula uma fortuna incalculável, fez desabar por completo o meu chão. A forma ardilosa como todo este processo, com vista à adoção de crianças por parte dos crentes, consequência da proibição destes ter filhos legítimos, era desencadeada, é no mínimo aterrorizadora. Isto não é religião, isto não é fé, isto não é coisa nenhuma, que não uma máquina de fazer dinheiro para sustentar mentes doentes e totalmente desequilibradas.

E se numa primeira abordagem estes dois temas até possam parecer tão diferentes, no meu humilde entender, há algo que os une, algo em comum, algo que falhou redondamente em ambos os cenários – o Estado Português. E não é com qualquer tipo de preconceito que o digo, até porque distancio-me bastante da anarquia, é simplesmente porque entendo que nós cidadãos, contribuintes do estado, temos obrigação de lhe exigir responsabilidades por aquilo em que falha. O estado falha, quando financia através de diferentes ferramentas financeiras, uma instituição de solidariedade e não fiscaliza os seus atos, mas ainda pior, é ter tido atempadamente conhecimento de que algo de errado se passava na gestão desta associação e nada ter feito. E o estado falha escandalosamente, quando através da Segurança Social, envia para um lar de crianças totalmente ilegal, crianças retiradas às suas mães biológicas, permitindo ainda que estas sejam levadas do País, sem qualquer tipo de autorização ou pronuncia por parte dos seus progenitores. Num estado social, não é de todo concebível que isto aconteça, e nenhum cidadão, por mais democrata que seja, pode compactuar com o atual e ensurdecedor silêncio.

 

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