Entre o dever de informação e o direito à privacidade

O Censos 2021 iniciou-se há cerca de duas semanas e com ele uma torrente de críticas provenientes de vários sectores da sociedade portuguesa. Devo reconhecer que me surpreenderam sobretudo porque todas vêm incidindo sobre a escassez de perguntas e o seu parco alcance, quando vivemos um presente em que a palavra de ordem tem sido a de
máxima protecção dos dados pessoais.

Sei bem que me vão retorquir que os Censos, que desde 1981 se realizam em Portugal todos os dez anos, visam responder às questões quantos somos, como somos, onde e como vivemos, procurando traçar a mais rigorosa radiografia de Portugal, dos seus habitantes, a qual é absolutamente essencial como fundamento e orientação de futuras políticas públicas.

Assim sendo, quanto mais perguntas forem colocadas e mais específicas forem, mais exacta e clara será a imagem obtida e, supostamente, mais adaptadas e eficazes serão as políticas públicas.

Sim, mas então, se fosse este o único aspecto em causa, não haveria limite para o que se poderia perguntar, existindo justificação plausível para cada uma das questões, quaisquer que estas fossem. Esta era a minha preocupação inicial: qual a extensão e alcance das perguntas, quando o Censos é de preenchimento obrigatório (e a multa por incumprimento pode ascender aos 50 mil euros)? Ou seja, até onde sou obrigada, por lei, a expor a minha vida
pessoal?

Dir-me-ão que todas as respostas são confidenciais e, com efeito, estão protegidas pelo segredo estatístico, não podendo ser divulgadas ou cedidas a terceiros, restringindo-se a sua utilização a fins estatísticos, para o que são anonimizadas. Não dissertarei sobre a desanonimização de dados, sobre o “hacking” de dados ou sobre o carácter indelével do que se inscreve no mundo virtual. Independentemente destes aspectos, não me sinto confortável a
apresentar informações sobre a minha vida pessoal a outrém. Trata-se de um conceito simples, o de privacidade, a que todos temos direito.

Por isso, considero não ser tarefa fácil estabelecer um equilíbrio entre o que importa efectivamente perguntar e saber (em função dos objectivos do Censos) e o que se poderá e deverá manter sob reserva pessoal (no respeito
pela privacidade individual). Revela-se agora também não ser tarefa pacífica.

Tomemos como exemplo a orientação sexual individual: porque é que a ILGA (International Lesbian and Gay Association) e o Bloco de Esquerda criticam o que designam por “invisibilidade das pessoas lésbicas e gays, bissexuais, ‘trans’ e ‘intersexo’”?

A orientação sexual de cada um pertence à esfera privada ou pública? A orientação ideológica política, deverá ser também declarada? E a orientação alimentar, vegan, macrobiótica ou outra?

A esfera privada do cidadão vem sendo francamente reduzida por duas vias bem distintas.

Uma primeira decorre do reconhecimento social consensual de que muitas ofensas, agressões e crimes se vinham praticando livremente ao abrigo de uma conceptualização muito ampla e inflexível de privacidade. O exemplo mais evidente será o de violência doméstica, nas suas múltiplas e dramáticas manifestações, que saiu da esfera privada para passar para a pública, tornando-se mesmo crime de declaração obrigatória. Uma segunda via reporta-se à exposição
pública da vida pessoal por que muitos optam na sua vivência virtual, através da divulgação de fotos e vídeos ou da publicitação de sentimentos íntimos, num virar do avesso a sua vida e, por vezes, também a de outros.

Nesta dinâmica de erosão progressiva da privacidade individual, que o Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados Pessoais procura contrariar, o ponto de equilíbrio entre o direito de reserva do cidadão e o dever de responder ao Censos estará sempre exposto a críticas.

Importa que neste debate tenhamos presente os diferentes valores em causa e o respeito que cada um exige.

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