Opinião de Sofia Ribeiro
Há pouco mais de dois mil anos Maria e José procuraram, em vão, um sítio condigno onde Maria pudesse dar à luz. Não havia lugar na hospedaria e Jesus nasceu num estábulo, tendo sido colocado numa manjedoura envolto em panos. O Messias nasceu perante a indiferença da comunidade. Pergunto-me se hoje isso poderia voltar a acontecer.
Vêm-me à ideia os milhões de refugiados em migração, viajando não para responderem a um censo, mas por necessidade de sobrevivência. Imagino (no fundo, todos sabemos) que haverá milhares de mulheres grávidas que, para escaparem à guerra, também percorrem quilómetros de todas as formas que lhes são possíveis, e acabam por ter as suas crianças como e onde podem, tentando, tal como Maria, dar-lhes o máximo conforto.
As mais felizardas acabam por tê-las num campo de refugiados, rodeadas por médicos que lhes providenciam os cuidados mínimos de saúde de acordo com os padrões Ocidentais. Depois voltam às suas tendas ou pré-fabricados (quando os há) e a vida continua, na luta pela sobrevivência, certamente da alma. Pergunto-me como estará Sofia, uma criança que nasceu num hospital de campanha na Jordânia, no dia em que eu o visitei, integrada numa delegação do Parlamento Europeu. Nunca cheguei a conhecer a Sofia nem os seus pais, mas soube que, a uma menina que nascera naquele dia, os pais e as equipas médicas e de enfermagem acabaram por dar-lhe o meu nome, quiçá na esperança que tenha um futuro auspicioso. Algures na apelidada Terra Santa há uma menina com o meu nome. Não sei em que condições, também um sinal da indiferença que marca os dias de hoje. E isso deixa-me um nó na garganta.
A todos os recém-nascidos os seus pais fazem votos de que tenham uma vida boa, com saúde, felicidade e fortuna, mas alguns têm apenas mais sorte do que outros. Mesmo cá, no desenvolvido Mundo Ocidental Europeu, onde o Estado social providencia respostas de saúde e de acompanhamento social sem paralelo no resto do Mundo, há apoios que ficam por prestar. Principalmente aos mais idosos e aos deficientes. Ainda esta semana fomos confrontados com a chocante notícia da morte de uma idosa, no Porto, após ter sido resgatada pelas autoridades que a encontraram inanimada, acompanhada pelo seu filho com deficiência severa. A D. Ana, com 85 anos, dependia apenas de si. E esteve quatro dias caída no chão, sem ter ninguém que a ajudasse. O Estado social não a ajudou e isso deve fazer-nos reflectir sobre as formas públicas de indiferença social.
É certo que nenhum Estado pode conhecer e apoiar todas as situações de miséria humana que existem. Mas situações como esta não podem ser consideradas marginais e vão muito além da pertinente discussão pela eficácia do rendimento mínimo que deve visar a integração social. O Estado social é-o, principalmente, para aqueles que têm condições para o requerer. Os incapazes e todos aqueles que vivem situações de pobreza envergonhada ficam de fora. Muitas vezes bem debaixo dos nossos olhos que, nesta correria a que nos viciámos, se tornam cegos. No Mundo frenético em que vivemos, talvez seja tempo de voltarmos à base e analisarmos que Estado social temos. A sua eficácia e abrangência não faz os tablóides do aumento do salário mínimo, mas certamente não por isso nos devemos arredar desta discussão, que não pode centrar-se nos recursos financeiros. Para que não haja simplesmente uns com mais sorte do que outros. Para que haja um verdadeiro Natal social.