Assobiar para o lado — Opinião de Maria do Céu Patrão Neves

Recep Tayyip Erdogan, o Presidente da Turquia, afirmou esta semana, a propósito da proibição de países europeus em permitir a organização de comícios políticos turcos, que “se a Europa continuar com esta atitude, nenhum europeu em nenhuma parte do mundo andará pelas ruas em segurança”. Apesar de há muito considerar que Erdogan constitui uma ameaça muito real e a maior que hoje pende sobre a paz da Europa, reconheço que ainda fiquei perplexa. Esta nova manifestação de prepotência e arrogância adoptou agora uma evidente expressão de ameaça que surpreende sobretudo pela forma totalmente directa e absolutamente clara que assumiu num tão curto período de tempo. É que este sentido das afirmações de Erdogan há muito é conhecido como não só defendido, mas protagonizado também pelo próprio no seu crescente autoritarismo nacionalista e consequente antagonismo xenófobo. No entanto, não esperava que se viesse a ostensiva e inequivocamente a declarar tão depressa.

Erdogan deixou, pois, de tentar disfarçar a sua verdadeira natureza. Em contrapartida, porém, a Europa continua a fazer de conta que nada se está a passar, nada de novo, nada que mereça a sua atenção. Continua – como se costuma dizer – a “assobiar para o lado”!

Erdogan foi Primeiro-Ministro, entre 2003 e 2014 e é Presidente desde 2014. Este é, aliás, um percurso paralelo ao de Putin que foi Primeiro-ministro entre 1999 e 2000, depois Presidente da Rússia entre 2000 e 2007, voltou a ser Primeiro-Ministro entre 2008 e 2012, e de novo Presidente desde 2012, tendo prolongado o mandato presidencial de quatro para sete anos. Erdogan quer agora alterar a Constituição para permanecer no poder até 2019. Ambos têm personificado a figura do ditador numa era democrática. Isto é, ambos têm usado e manipulado os procedimentos democráticos para perpetuação do seu poder político, no que consiste uma flagrante instauração de uma ditadura na era democrática. Mas, para os europeus, é como se este regime democrático, o mais englobante e inclusivo da história da humanidade, se obrigasse a uma proporcional flexibilidade de estilos ou mesmo ambiguidade de atitudes, tornando-se permeável a alguns comportamentos autocráticos ou mesmo ditatoriais. Está-se a ver o evoluir de ditaduras, mas é como se não se percebesse…

O que, em todo o caso, ultrapassou a mais permissiva concepção do jogo democrático foi o episódio do forjado golpe de Estado que, orquestrado por Erdogan no verão passado, lhe permitiu eliminar todos os seus reais ou potenciais inimigos políticos. Do mundo ocidental em geral e da Europa em particular fizeram-se ouvir as mais pungentes manifestações de simpatia e solidariedade sobre o que se sabia ser um golpe de Estado invertido. Mais uma vez, “fez-se de conta”…

Desde então sucederam-se vários discursos e acções que suscitam forte inquietude como seja a afirmação de que as fronteiras políticas da Turquia não são as fronteiras do seu coração ou o reforço das relações diplomáticas entre a Turquia e a Rússia.

Agora assistimos à ousadia – permitam-me que diga também “ao desplante” – do Presidente da Turquia querer organizar comícios políticos (para promover o “sim” ao referendo que lhe prolonga o poder até 2029) em outros países e ameaçá-los por não o permitirem!? Reivindica, pois, o direito de exercer a sua vontade em países que não o seu e de não aceitar que a contestem. E entre nós, europeus, ainda há quem diga que a Holanda e a Alemanha proibiram os comícios políticos turcos por estarem eles próprios em processos eleitorais. Estão-se deliberadamente a enganar… Esta semana, o novo passo foi o de, como Presidente de um Estado de direito, proclamar um discurso terrorista. O “monstro” está a crescer e nós a “assobiar para o lado”!

 

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